sexta-feira, 17 de novembro de 2023

MARTINICA

foi na velha Martinica que tudo aconteceu. eu, porém, de nada sei, pois nunca estive lá. mas o que aconteceu foi de tirar o fôlego de quantos o presenciaram, sem dúvida nenhuma. tão aterrador foi o ocorrido que nunca ninguém jamais foi mais o mesmo, imagino. eu, sim, continuo como sempre fui, me mantive sempre igual, pois, obviamente, não faço a menor ideia do que se passou. só o que posso dizer com certeza é que houve um antes e um depois naquele lugar, só não sei quando. realmente, nunca encontrei viva alma (nem morta) que tivesse testemunhado o fato, ou que conhecesse a história pelo relato de algum envolvido. pra falar a verdade, nunca conheci ninguém que ao menos soubesse que algo de diferente tenha ocorrido naquela ilha. não sei se me escondem de propósito, mas reina um misterioso silêncio sobre tudo isso.

domingo, 29 de outubro de 2023

UK

Um desgaste feliz no vazio daquele cigarro. A vida era o sonho. Nós dois, então, tragávamos nossas paixões entediadas. Havia panteras na internet, refúgios com sofás azuis e esconderijos abandonados. Passagens secretas, centros de energia cósmica, gregos samurais, trajetos indígenas, monges verdes. Angelina e sua fita K-7 de Le Petit Prince. Seu próprio Le Petit Prince, guardado como um tesouro desde a infância, você deu a uma garota russa por quem se apaixonou antes mesmo de saber que ela era russa. E ela foi embora. As suas sempre iam. Já a minha fossa foi francesa: Aline. Et je pleuré… seguidamente por uma semana e então percebi que Euclides fora envenenado. Algo foi subvertido. O jardim era dos gatos: “Espreguiçar ao sol/dessa tarde de inverno/meu Deus, a vida dos gatos/Senhor, eu quero!” A química interna, ou a alquimia, foi tomando cores. Nada havia que não refratasse em meus olhos como o sol nas árvores. E então eu conheci o lugar. Tudo reluzia em tons de violeta. Havia alguns monumentos como balanços gigantes, pessoas etéreas e o céu era esplêndido. Definir naquele instante todo o meu futuro foi o maior dos absurdos. O furacão da minha apatia. O filhote de cisne descortinando a beleza da escuridão. Eu tive meu cavalo de fogo, seu nome era Universal Killer. Um lindo domingo púrpura eu passei em seu nome naquele lugar antigo magnífico com janelas e detalhes de ferro retorcido verde-musgo. The Universal Killer, the UK, lavou nossas almas enferrujadas em galopes vigorosos com o infinito truculento no peito e a cabeleira ruiva. Virou música. O verde-musgo. Entre tantos cenários perfeitos, violinos, bruxas, sonhos derretendo, imponente jorrava a fonte para mim, adormecida para os olhos normais. Havia um índio e duas panteras sobre o jorro virulento. Há décadas interditada, para mim ela se abria em momentos de melancolia profunda. Preciso me lembrar de Daniel, que lia meus pensamentos e gritava junto comigo: Kafarnaum!!! Seguia seriamente minha demonstração de como agia o destino representado na formação das heras trepadeiras. Entre nós deveria figurar sempre o semblante de Gala, enquanto Miles Davis era sacrificado no jardim.

sábado, 17 de dezembro de 2022

PRINCESA EXTRATERRENA

Eu estava lá. Era um salão amplo e de aspecto um tanto futurista com vigas metálicas. Um dos cantos era de vidro, inclusive o chão. Ali era onde os visitantes podiam experimentar a ausência de gravidade. O instrutor era, no sonho, o mesmo que nos recebera no "Projeto Portais" (este não é o nome real), na ocasião em que nossa turma de faculdade foi até lá por acaso, pois em realidade fizéramos a excursão para conhecer uma vila quilombola vizinha deste estranho lugar. No sonho ele parecia ter mais importância do que na realidade. Eu estava com um velho amigo meu de colégio, um sansei muito vivo e divertido. No meio da experiência, estávamos lá flutuando, eu comecei, contra a minha vontade, a duvidar de tudo aquilo. Este meu sentimento cético foi percebido e eu fui convidado a me retirar, ou melhor, fui simplesmente retirado. Na porta de saída estava quem eu entendi ser como que um porteiro do local. O curioso é que na vida real, ou fora do sonho, este porteiro é quem aparece como o grande mentor e dono do projeto. Enfim, saí sem nenhuma resistência, admitindo resignadamente o surgimento deste meu instinto cético. Mas subindo o caminho para longe do local, já distante uns cem metros, comecei a me lamentar, dizendo a mim mesmo que não era justo, eu havia começado a duvidar deles, de que eles não eram de fato interlocutores de extraterrestres, que eles eram uma fraude, mas havia sido simplesmente um instinto mesmo. Eu queria acreditar, eu acreditava, mas minha cabeça automaticamente começava a duvidar. Não era justo. Então percebi que um aparelho voador estava vindo em minha direção. Seria como que um drone, mas com braços. Parando em cima de mim, os braços do drone se prenderam aos meus pulsos e, me levantando do chão, ele começou a me levar de volta para o projeto, mas desta vez contornando o prédio e me conduzindo por outra entrada. Chegando perto do local, passamos por uma fila de seres que só pude pensar que fossem extraterrestres. Eles tinham corpos de seres humanos, mas translúcidos. Seus corpos tinham o formato dos de seres humanos, com os músculos muito bem definidos, como se fossem estátuas ideais ou robôs. Me ocorre agora, depois de passados mais de dois anos, se não seriam eles robôs. Não havia pensado nisso. Na época, não me pareceram, eram seres vivos. Mas, como eu dizia, seus corpos eram como que formados de um vidro orgânico, uma substância translúcida como uma água firme, que tomasse a forma humana e fosse rígida sem precisar de nenhum molde. Imaginem um corpo humano transparente, mas com o interior, invés de órgãos e sangue, cheio de luzes e movimento. Eram mais ou menos como aqueles seres aquáticos abissais, polvos e lulas transparentes e coloridos ao mesmo tempo, emitindo todas as cores do arco-íris, em cintilações, como os feixes de luz que um prisma de cristal pode refletir, mas muito mais exuberantes. Um pouco como aquelas cores de gasolina no asfalto. Eram duas fileiras destes seres, uns de frente para os outros, como se formassem uma passarela para nossa entrada, como se fossem uma guarda real. Digo isto porque me levaram à presença de um deles que parecia ser a líder. Era uma presença feminina, sem dúvida assim me pareceu, se é que existam os gêneros, como nós os conhecemos, também entre eles. Mas não havia nada de majestoso, ela estava dentro de uma barraca, elevada à altura de meu peito, que lembrava um guarda-sol colorido. Seu corpo estava recoberto de panos. Sei que não pude entrever seu rosto, mas apenas seu braço, um braço de manequim de vitrine, do qual certamente ela se servia diplomaticamente para nos satisfazer em nossas pantomimas gestuais de cumprimentos. Entendi por tudo isto que não me era conveniente por algum motivo ver sua real figura, talvez por um pudor feminino, um orgulho de princesa, para evitar que eu me espantasse com uma figura não afeita aos moldes estéticos terrestres. Mas talvez, um talvez mais forte, mais provavelmente porque seu corpo seria por demais delicado para entrar em contato com o meu e com o nosso sol. Foi assim que compreendi no instante. O que foi corroborado por seu vivaz animal doméstico que me mordia os sapatos. Ele também estava todo coberto de panos que lembravam esses tapetes de retalhos coloridos. Sem saber o que fazer, comovido por seu gesto de se fazer conhecer a mim, peguei sua mão de manequim e a beijei. Acordei com a forte sensação deste toque em meus dedos e lábios.


terça-feira, 8 de novembro de 2022

GUARDA-CHUVA

nunca existiu ninguém mais indeciso. ele queria ir, iria com certeza, estava pronto, iria encontrá-la, será que deveria?, iria sim, mas ficava dando voltas no quarto, procurando qualquer coisa, coragem talvez, mas estava chovendo!, que importava?!, tinha um guarda-chuva, não era muito bom, era daqueles que se vendiam nas saídas do metrô por 5 reais, mas funcionava, tinha sido presente dela, num dia em que foram ao zoológico, e na volta, garoando, os dois embaixo do guarda-chuva, o ônibus dela passou primeiro e ela disse que ele poderia ficar com o guarda-chuva, e ele ficou no ponto com o guarda-chuva marrom com bolinhas brancas, era uma boa lembrança, dava dó usá-lo, mas iria usá-lo, que remédio?!, tudo na vida se desgasta mesmo, até os sentimentos, por que não os objetos?

foi, então. não sem antes verificar mais uma vez em todas as gavetas e no armário se não havia nada que poderia ser proveitoso levar, alguma pedrinha ou possível candidato a amuleto, ou mesmo se não havia mais nenhum livro que se animasse a acompanhá-lo, além daquele que sempre levava consigo em sua bolsa verde, parecida com a dos carteiros... por fim, não havia mais nada a fazer, só ir. e ele já estava pronto, iria mesmo. só esperava agora pelo momento certo. aquele instante em que os pensamentos dão uma trégua, ou se distraem. olhava pela janela a chuva fraca, suspirava uma lembrança, afogava outras... pegou uma corrente de ar e foi.

quando começava a andar, uma marcha suavemente despótica dentro de sua pele ditava-lhe o ritmo dos passos, evitando pisar, sempre que possível, os vincos dos azulejos e as rachaduras das calçadas. nosso amigo foi lidando bem com a marcha automática e com a chuva, de que gostava desde sempre, mas que aumentava. quando chegou a um ponto suficientemente distante, a ponto de inviabilizar o retorno, a chuva tornou-se torrencial. teria aguentado, estava suportando bem, apesar das calças ensopadas até os joelhos, mas o vento tornou-se vendaval. alguém já passou por isso algum dia? fica-se ali a lutar contra a chuva, com nada mais que um guarda-chuva como escudo contra a tempestade. claro que ele não resistiu, não era muito firme, era muito querido, mas não era firme, tinha sido um presente, mais do acaso que da intenção, é verdade, mas fora muito bem recebido, era muito querido, apesar de baratinho, só não era muito resistente, visto que não resistiu, e as hastes de metal viraram do avesso.

o guarda-chuva marrom de bolinhas brancas, presente dela. quem já passou por isso sabe que a revolta é inútil. mas ele se revoltou. revoltou-se no meio da rua deserta, jogou fora o guarda-chuva, pegou de volta o guarda-chuva, andou até o meio da rotatória sem árvores, encarou a chuva, encarou quem estava por trás da chuva, quem sempre esteve por trás de tudo, que o fazia sempre de palhaço, que só insinuava insinuava insinuava sempre uma felicidade, uma insinuação de felicidade que precedia o desastre, um pedacinho de queijo numa ratoeira aquela felicidade, um lusco que alimentava o fusco aquela felicidade. gritou com Ele, a letra maiúscula já O indica. “mais forte!”, gritava, e o céu respondia com trovões. “só isso?!”, retrucava, e os raios trincavam o céu.

por que sempre gargalham em meio à revolta os que pretendem interrogá-Lo em meio à tempestade? gostariam de ouvir Sua voz? ou vê-Lo? gostariam de qualquer sinal d’Ele? ou fazem-no mais talvez pelo poder teatral, pelo desbravamento da matéria, das possibilidades do corpo diante das forças mais brutas da natureza? mas imaginam que Ele não está lá furioso, mas compreensivo, imaginam que Ele é Aquele que, no mínimo, entende sempre e não sabe senão amar. mas riem nervosamente porque talvez Ele não haja. riem nervosamente porque talvez anseiem muito que Ele haja, na profundeza de seus instintos ignorados. porque talvez sem Ele a infinita sequência de encontros e desencontros da vida nunca faça o menor sentido.

o fato é que lá estava ele, sozinho e encharcado, com o guarda-chuva arrasado. resolveu se deitar, era até uma bela poça, a água estava límpida e a grama verde. relaxou. se fosse um dia quente, nadaria ali. não estava quente. pensou que poderia pegar uma pneumonia e se deixou ficar, até gostava um pouco dessa ideia. não acreditava nela porque não ficava doente nunca, mas gostava e se deixou ficar. a chuva caía, ainda forte, mas não mais ameaçadora, agora sem raios e trovões. que batismo. foi ficando cada vez mais límpido. que bom momento. sentiu-se mais ou menos de acordo com o mundo, liquefez-se sua ansiedade. se Ele houvesse, estaria rindo, ou melhor, sorrindo.


quarta-feira, 7 de dezembro de 2016

MORRO VERDE COM PRIVADAS INCRUSTADAS

A maravilhosa manifestação da escrita. Eu vi um lugar que pode ser um tipo de hospício divino, digo, um sítio espiritual para o refazimento do ser. Mas lá não parecia haver muita placidez. As pessoas estavam agitadas, pareciam sim loucas, mas estavam felizes. Uma ouvia uma música brega dos anos setenta transformada em louvor, vestia roupas da mesma época, estava pendurada numa rocha pontiaguda bastante alta, era japonês, me chamou pra subir e sentir aquela maravilha, eu acenei e não fui. Fui para um pátio, o lugar todo era entre montanhas, numa altitude considerável, ventava muito, eu abria minha jaqueta com as mãos nos bolsos como se fossem asas, esperando que o vento me levasse, me levou um pouquinho para trás. Havia pessoas num alpendre, ou embaixo de uma varanda, havia até bastante gente, mas não tanto, e alegres, mas não necessariamente, entusiasmadas talvez, mas sem se darem conta, e eu fui correndo direção um morro verde, e fui subindo, várias privadas incrustadas nele, acordei quando ia atingir o topo. Não mijei nelas.

quinta-feira, 30 de junho de 2016

A CAIXA DE MADEIRA

Hoje eu tive um sonho. Havia uma nuvem muito estranha no roxo do céu noturno. Ela era de um vermelho bem intenso e de uns dourados e dela saía um raio contínuo. Eu tentava fotografá-la sem sucesso, caminhando em sua direção por uma rua de um bairro periférico, talvez de minha cidade. Dois passantes meio alcoolizados intrigaram-se comigo e travei um diálogo rápido com um deles, tentando desvencilhar-me. Seguindo em frente, vejo no gramado à minha direita um conjunto de esculturas de três figuras estranhas e outra menor, num tipo de cena. Mas vou em direção à minha nuvem, atavesso um estabelecimento todo aberto, talvez um restaurante, e entro num cafofo nos fundos deste lugar, de onde, por uma abertura entre o teto e a parede, ou barranco, eu poderia observar melhor o fenômeno. Passou por mim uma mulher negra, dando a entender que aquilo era habitual, mas que ela não se metia a averiguar o que fosse. Então a nuvem-nave veio em minha direção. Eu pensava que fosse um tipo de nave espacial. Quando foi chegando perto de mim, ela foi diminuindo até ficar na minha frente, tomando a forma de uma caixa de madeira entalhada, talvez bambu. Eu a tomei nas mãos e, no casebre onde estava, coloquei-a numa cadeira afim de fotografá-la melhor, mas ela flutuava e, aproximando-se de mim, abriu-se parecendo querer dizer algo, o que foi confirmado por um menino que estava ao meu lado e que, pegando-a, desenhou uma linha oval representando uma boca em um de seus compartimentos vazios. A caixa deveria ser japonesa, pois além de dar essa impressão não sei por quê, parecia dizer algo como tekai, com muita dificuldade, depois soltou um suspiro profundo. E eu acordei com a impressão de que ela fosse o espírito do universo. Mas mais provável que fosse um objeto para a comunicação dos seres que estavam por trás daquela nuvem. E refleti por meia hora ainda na cama o pensamento de que a humanidade se tornou tragicamente idiota quando se inventou à parte de toda a vida à sua volta e do próprio universo que suspira.

sábado, 9 de janeiro de 2016

O ASSOVIO DO GARI

José perambulava e sabia que andava em vão. Sua busca por sinais, por pessoas predestinadas, era apressada demais, como uma fuga, para fazer sentido, para conectar tudo, ligar as partes, observar de fora, de uma posição mais privilegiada, o mecanismo da engrenagem. A cidade era um desfile de intenções escusas, olhares desconfiados, caras feias. Percebia que, nessa selva, a seriedade era escrava. As hienas comandavam tudo por ali. Mataria cada um desses ‘risadinhas’ se coubesse a ele consertar o mundo. José começava a perceber quanto de descartável havia nele: sua insistência, sua bravura, sua paciência. O homem preciso e justo que sempre se considerou, provocava nos outros uma aversão imediata, como uma ameaça. Estava claro que o silêncio perturbava aos imbecis, e autocontrole estava longe das características que buscavam em seu ideal de homem esperto. Mantendo firmes sua consciência e seu caráter, o emprego de gari foi o único trabalho que conseguiu. Se soubesse antes da grandeza espiritual que sua função de varrer as ruas lhe permitiria cultivar - e ainda colocava-lhe tão à margem, numa posição perante o resto, que sua presença era quase invisível - nunca teria sofrido a perda de tempo de procurar por outros serviços. Apenas, no fundo mais íntimo de seu ser, residia ainda nele uma vontade diminuta de ser poeta, digo, pianista.